quarta-feira, 21 de novembro de 2007

TRAFICANTES DE SEXO NEM UM POCO FRÁGIL: Elas são de cama, mesa e 'Boca-de-Fumo'

Estudo Nacional de MV Bill e Celso Athaíde revela que mulheres ocupam cada vez mais posições estratégicas nas organizações criminosos, formando até mesmo uma rede de apoio.
Jornal Extra, Rio de Janeiro
28 de Outubro de 2007
Domingo
Sem alarde, as mulheres estão ocupando posições até agora estritamente masculino no tráfico de drogas do Rio. Elas chegaram ao alto escalão da criminalidade e desempenham todas as funções nas bocas-de-fumo. Podem ser as donas do negócio, as responsáveis pela segurança dos chefes ou as que preparam e vendem as drogas. O universo feminino constitui ainda uma rede de apoio aos homens envolvidos no tráfico. Há mulheres que sobrevivem vendendo comida, comprando roupas, cuidando dos feridos, ajudando os que saem da prisão, pagando propinas a policiais e até satisfazendo sexualmente os traficantes.
O retrato inédito sobre o envolvimento das mulheres com o tráfico faz parte de um estudo que foi a base para o livro "Falcão-Mulheres e o tráfico", de Celso Athaíde e MV Bill. Para conhecer essa realidade, eles percorreram 20 estados, durante oito anos, à procura de histórias que revelassem o que levou crianças, adolescentes, jovens, mães e até avós a buscarem uma vida no mundo do crime. Relatos que terminam, na maioria dos casos, de forma trágica.
"Eu imagino que 20% dos serviços das bocas-de-fumo sejam desenvolvidos por mulheres. Elas estão em todas as áreas na escala do tráfico. É claro que existem menos mulheres do que homens, mas elas estão ocupando espaços na hierarquia do crime.", disse Celso Athayde, que identificou pelo menos 16 atividades no tráfico ligadas às mulheres.
As mais bem-sucedidas se orgulham do respeito e do poder que conquistaram em meio aos homens, mesmo numa atividade criminosa. Janaína (nome fictício), de 22 anos, não esconde a satisfação quando revela seus ganhos ao arriscar a vida: R$ 2 mil por mês. Responsável pela segurança de um chefe do tráfico na Zona Sul do Rio, ela abriu mão de ter sua própria casa e de cuidar da filha, diante do risco que seria ficar ao seu lado. Por segurança, não usa celular e dorme cada dia num lugar diferente.
"Sinto falta de uma vida normal, mas o sonho de ser mãe acabou me levando ao tráfico. Só queria ter uma família, mas meu ex-marido enlouqueceu na prisão e ameaçou matar até nossa filha. Tinha 17 anos quando procurei os 'amigos'. Queria me proteger. Comecei de baixo, mas agora ninguém mexe comigo. Faço a segurança do 'patrão' e sou respeitada em qualquer favela", disse Janaína, que garante não ter medo da morte: "Já garanti minha vida. Se eu morrer, minha mãe e minha filha ficarão bem. Elas têm tudo o que precisam".
Dorinha (nome fictício), de 20 anos, descobriu o crime na própria família. O pai morreu a serviço do tráfico. A mão é dependente em cocaína, daquelas que vendem tudo em casa para conseguir a droga. Desde pequena, a jovem tinha dois sonhos: virar bandida e ir a Disney, nos EUA. Até agora, só realizou o primeiro. O outro está cada vez mais distante, principalmente para quem sequer pode sair da favela onde vive.
"Adoro essa vida que levo. Gosto de ficar aqui (uma favela na Zona Oeste). Foi o caminho que escolhi. Tive e tenho oportunidades para largar o crime", disse Dorinha, acrescentando: "Não gosto de sair nem para comprar roupa. A polícia é doida para por as mãos em mim. Não tenho da morte, mas de ser torturada. Se me pegarem aqui dentro, eu mesmo me mato. Para a prisão não vou de jeito nenhum".
Às vezes elas chegam a pôr suas vidas em risco para conquistar a confiança dos chefes. Aos 23 anos, Kelly (nome fictício), que trabalha vendendo drogas numa 'boca-de-fumo' em São Gonçalo, relembra que sempre manteve sua posição em tiroteiros com a polícia para demonstrar coragem. Mesmo quando os outros seguranças do tráfico já haviam recuado.
"Precisamos mostrar que somos iguais aos homens. Faço tudo o que me pedem", disse a jovem que, como outras traficantes, evita usar drogas e manter a aproximidade da família.
Para muitas,. o tráfico é considerado somente uma fonte de renda, atraindo também mulheres acima de 30 anos.
"O crime reflete o modelo social em que vivemos. Elas estão próximas ao ambiente do tráfico e acabam desenvolvendo a idéia de que aquele espaço não é tão ruim assim", disse MV Bill.
Entregas: Serviço Feito No Fio Da Navalha
O transporte de drogas, dinheiro e até armas entre as favelas dominadas pela mesma facção é a atividade que mais emprega mulheres no tráfico no Rio. Para a maioria, é a porta de entrada para um mundo do qual terão dificuldade de se desvencilhar, devido à dependência econônica. O fascínio inicial pelo convívio com os 'falcões' é substituído rapidamente pela necessidade de sustentar suas familias.
"No começo, era somente empolgação, para ficar mais perto das drogas. Depois veio a família, precisava sustentar meus filhos", disse a mulher de 27 anos, que desde os 13 trabalha para o tráfico.
As 'cargueiras', como são conhecidas, estão à frente d um dos serviços mais vitais para o tráfico. Elas são responsáveis pela divisão de drogas, pela troca de armas e pelo repasse de dinheiro entre as 'bocas'. Um trabalho que exige dedicação exclusiva, sem dia ou horário.
"Quando chamam, temos que ir. É um trabalho arriscado, pior que o dos meninos, que pelo menos têm armas para se defender", disse uma 'cargueira' de 22 anos.
A discrição é a principal regra de uma 'cargueira'. Nas atividades do tráfico, é a que expõe mais as mulheres. Elas não podem sair armadas e não devem chamar a atenção. Para evitar serem reconhecidas, não mantém por muito tempo o mesmo corte ou cor do cabelo.
"É um trabalho solitário", disse ajovem, que já transportou R$ 400 mil numa viagem.
Há casos de mulheres que são responsáveis há 14 anos pelo transporte de drogas em favelas da mesma facção. Chegam a ter um salário fixo, de R$ 150 por semana.
"Tentei sair muitas vezes. Depois que fui presa, tive que abandonar minha casa. Se eu arrumar emprego, saio. Sou sozinha para cuidar de dois filhos. Não falo com meu pai a dez anos. É capaz de ele me entregar a polícia se me ver", desabafou uma 'cargueira'.
O trabalho na rua lhes dá outra vantagem no dia-a-dia do tráfico; a experiência de fazer entregas em outras favelas permite um bom conhecimento da cidade. Dessa forma, acabam sendo usadas como guias em ações da quadrilha, seja em casos de assassinatos ou tentativas de invasões.
"Muitos 'amigos' morreram, inclusive o pai do meu filho. Em cada mês, choramos por um. Nem conto mais, perdi quase 50 'irmãos'. É pegar uma foto antiga de um churrasco e contar que só há três vivos em mais de 30 pessoas que aparecem", disse uma 'cargueira'.
Saiba O Que Elas Fazem
* Contenção - mulheres que ficam na "contenção" têm a missão de vigiar os acessos às favelas e cuidar da segurança dos chefes de suas quadrilhas e das 'bocas-de-fumo'. Elas costumam usar armas mais potentes, como fuzis e submetralhadoras.
* Donas dos Morros - Elas são grandes responsáveis pelo tráfico em algumas favelas. Controlam as 'bocas-de-fumo', organizam a distribuição das drogas e negociam com fornecedores. Muitas são vaidosas e gostam de usar jóias de ouro.
*Cargueiras - São as que transportam drogas, armas e dinheiro para as quadrilhas. Trata-se de uma função que requer extrema confiança dos chefões do tráfico, já que elas são peças chaves nas negociações. Algumas usam disfarces.
Prostitutas de 'Boca-de-Fumo'
Um mercado de prostituição foi criado dentro das próprias comunidades para atender os 'falcões'. São moradoras, a maioria entre 13 e 20 anos, que buscam nos traficantes reconhecimento, drogas e dinheiro. Os 'programas', que são feitos de madrugada, seguem as mesmas regras das prostitutas de fora das favelas. O preço e a duração são combinadas antes. Ao final, elas são rapidamente expulsas da 'boca-de-fumo'.
Em geral, elas saem dali com uma pequena quantidade de cocaína, algumas pedras de crack e, no máximo, R$ 50. Às vezes, ganham não mais de R$ 5 por 'programa'. Conhecidas nas favelas, as jovens são identificadas por um apelido: 'as boqueteiras do tráfico'.
"Comecei a trabalhar com 13 anos. Uma amiga me mostrou como era e aceitei imediatamente. Sou 'viciada' e preciso de dinheiro. Os 'falcões" me 'fortalecem' (expressão usada para quem dá dinheiro). Além disso, um cara com arma dá o maior tesão", disse Érica (nome fictício) da Zona Oeste.
Érika é amiga de Flávia (nome fictício), outra jovem que satisfaz sexualmente os traficantes em troca de dinheiro ou drogas. Para ela, o trabalho pode até ser arriscado, mas a proximidade dos 'falcões' compensa o perigo.
"Uma vez saí com duas amigas e um cara. Ele raspou as nossas cabeças, e contamos para outros 'amigos'. Eles o algemaram e nós raspamos todos os seus pêlos do corpo. Se eu quisesse, ele morria", lembrou Flávia, sem esconder o orgulho da proteção dos 'falcões'.
Dependentes em crack, as jovens viraram 'boqueteiras' para conseguir manter a dependência. Com o dinheiro que recebem, ajudam a sustentar a família, criando um salário fixo. É o caso de Cristina (nome fictício), de 32 anos, desempregada que tem quatro filhos:
"Sou mais experiente que as meninas novas. Na troca de plantão, subo rápido para a 'boca', porque preciso chegar antes delas. Meu sonho é dar um quarto com bonecas para as minhas filhas".
Concorrência Interna
As mulheres também têm concorrência. Conhecidos como 'monas', os gays das comunidades procuram, escondidos, os 'falcões'. O segredo para eles conseguirem 'clientes', segundo Marcos (nome fictício), de 22 anos, é o silêncio:
"Se contar-mos para alguém, eles nos matam. Então, fazemos tudo sem cha,ar a atenção. A concorrêencia está maior. Como têm muitas 'boqueteiras', é preciso inventar algo novo.
Depoimento
Valéria (nome fictício), ex-dona de morro
"Ganhei muito dinheiro, mas não sobrou nada".
"Aos 44 anos, posso dizer que sou uma sobrevivente do tráfico. Fui umas das primeiras mulheres a se tornar dona de um morro (na Zona Norte). Fiz meu próprio esquema e consegui até levar uma vida fora da favela, só comandando os negócios. Voltava para casa toda noite, para ficar com minha filha. Mas acabei presa e condenada a 16 anos de prisão. Paguei o que devia e tento, agora, levar uma nova vida. Não é fácil, pois meu atual marido está desempregado e sustento a família vendendo quentinhas. Ganhei muito dinheiro no tráfico, mas não sobrou nada. Meu ex-marido, que foi meu grande parceiro no crime, acabou sendo assassinado pelos que seriam seus amigos. Com a sua morte, assumi tudo. Nunca me preocupei em ser presa, já que roubei pela primeira vez com 9 anos. Das instituições para menores, fugi 17 vezes. Já fui presa depois, outras dez vezes, mas nada que o dinheiro não fosse capaz de resolver. Só me arrependo de não ter visto minha filha crescer".
Alguns Trechos do Livro "Falcão: Mulheres e o Tráfico":
* "Filhos, falo por experiência própria, minha e de minha filha. Crime é coisa de mulher".
* "Quando chegamos ao beco, me deparei com a seguinte cena: uma mulher de 23 anos, grávida de três meses e que pensava em abortar. Era ela quem comandava o tráfico no local, herdado do finado marido".
* "Sua vida não era fácil. Toda a favela era adminstrada por ela".
* "A felicidade dos 'falcões" estava estampada nas suas caras, quando o assunto era as 'boqueteiras'. esqueciam o mundo e falavam das suas experiências da maneira mais feliz possível. Era um dos poucos momentos em que relaxavam".
* "Elas gostam mesmo é de estar ao lado dos 'falcões' e de ter 'conceito' com eles. Têm muitos codinomes: 'maria-fuzil', 'mamadinha' e 'boqueteiras'".
* "Tinha mei 'vicio' de cheirar. Ficava saindo com um, com outro. Uns me davam pó, outros R$ 5. Saio com eles, mas não me apaixono por ninguém".
* "A maioria das meninas prefere os bandidos do que os caras que trabalham direitinho, sem se envolver com o tráfico".
* "Parece que carregar um fuzil tem alguma "parada'mágica. O cara pode ser feio, 'péla-saco', que tem mina querendo ficar com ele".
Reportagem:
Ana Cláudia Guimarães
Eduardo Auler

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