segunda-feira, 26 de novembro de 2007

LITERATURA/HISTÓRIA: Capítulos Sombrios da História da Igreja

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Uta Ranke-Heineman Analisa O Longo Despotismo Masculino Sobre As Mulheres
Ranke-Heineman, Uta. "Eunucos Pelo Reino de Deus - Mulheres, Sexualidade e a Igreja Católica". (Trad. Paulo Froes). Ed. Rosa dos Tempos, 1996.
Críticos da primeira edição brasileira, faz três meses, do livro de Uta Ranke-Heineman, catedrática de teologia na Universidade de Essen (Alemanha), viram tom de ódio na obra. Este seria responsável pela maneira com que a autoridade lida com suas abundantíssimas remissões históricas; reproduzidas apenas literalmente, que dizer, fora de seu contexto de interpretação. Ou pelo rigor, beirando o emocional, com que trata certos doutores da Igreja Católica, como Santo Agostinho.
De fato, Uta escreveu movida a emoção, já que seria impossível promover a reabilitação moral do prazer sexual e o resgate da condição feminina de uma misoginia multisecular com a objetividade do cirurgião ao dissecar um cadáver. Mas se há alguém que tira do contexto histórico frases como a de Santo Agostinho, apontando na genitália o lugar teológico do pecado; ou a de São João Crisóstomo, a condenar a mulher-esposa como "adversária da amizade, castigo inevitável, deleite nocivo, mal da natureza pintado de lindas cores", não é certamente a autora. Saõ aqueles que tornaram tais expressões verdades necessárias, imutáveis e eternas, como o próprio Deus.
A sustentar a emoção de Uta, estão os dois pólos do subtítulo, intimamente conexos: a reabilitação do prazer sexual condiciona a da dignidade feminina. De onde vem a reverência cristã pela castidade? Não vem de Jesus, nem do judaísmo. Nasce da filosofia pré-cristã do estoicismo, a influenciar o judaismo tardio e o cristianismo nascente na forma do gnosticismo. Nasce também do maniqueísmo. Este, a que se ligou Santo Agostinho ante de sua conversão, estabelecia ser a procriação ato diabólico. Convertido, Agostinho guindou a procriação a finalidade do casamento, conservando, indisfarçada, sua repugnância pelo prazer sexual: "Se houvesse qualquer outra forma de ter filhos, então todos os atos sexuais estariam subosdinados ao desejo e, portanto, representariam um mau emprego deste mal", Eis aí: a procriação, que não se pode dar sem prazer, é o bom emprego do mal.
Virgens Teriam Cotas Maiores de Recompensas no Céu - Paralelamente, verifica-se uma exaltação exacerbada da virgindade no século de Agostinho, que é o correspondente simétrico do pessimísmo moral em matéria sessual. A ponto de se desnfocar o papel de Maria como mãe de Deus, seu primeiro e principal título na fé cristã. Negando-lhe tudo que tivesse a ver com a sexualidade feminina, ou que fosse "ligado ao processo natural de concepção e parto de um filho". O quadro literário usado pelos Evangelhos, na linha dos midrashim judaicos - a virgindade - para exprimir aquele papel primeiro, foi tirado do nível da narrativa para o nível dos fatos, introduzindo-se assim a leitura historicista dos textos - para não dizer anatômica. Na sequência dessa tradição de origem estranha, virá o celibato dos padres, implantado no Ocidente progressivamente mediante tiradas de terrorismo (o príncipe era autorizado pela Igreja a reduzir a esposa do padre à escravidão, caso esta não quisesse se separar dela; ou podia o bispo tomá-la como propriedade, o que dava no mesmo). E, depois, em 1.139, sancionado definitivamente, quando se passou a negar a ordenação de homens casados e a declarar nulo os casamentos dos ordenados. Virá também a apartheid religioso da mulher, no tocante às funções sagradas: vedava-se às mulheres, ainda no início deste século, até o uso de sua voz nos corais litúrgicos. para as vozes de contralto e soprano, recorria-se a meninos; ou, na itália dos séculos XVI-XVIII, aos "castrati". Esse longo, arbitrário e bitolado despotismo masculino sobre o sexo feminino é violação da justiça, tanto quanto o apartheid político. Que, para Santo Thomás de Aquino, repetindo São Jerônimo, vigoraria até na outra vida: eles fixaram cotas diferenciadas de participação nas recompensas no céu - virgens e castos teriam 100%, viúvos e viúvas, 60% e casados 30%.
Autora Perdeu Aval da Hierarquia Católica - Esse confinamento não foi o bastante. A vida sexual e a vida conjugal ficaram sob vigilância rigorosa, dos "penitenciários" (responsáveis pelas tarifas de penitência) da Idade Média às orientações mais ou menos oficiais do presente. Vistas como aberração pelos leigos, pelo tanto com que conflitam com a antropologia, a psicologia, a medicina e... a teologia. É o caso da contracepção vista como assassinato, em nível igual ao aborto, ou mais antinatural que o incesto. "Isso é um arraso para a teologia", diz Uta, no final do livro. "Priva as pessoas de sua experiência pessoal da vontade de Deus, substituindo-a por um prolífico sistema de casuísmos, mais vizinho dos códigos de delitos e penas".
A scholar Uta Ranke-Heinemann trouxe verdades à luz mais do que novidades. Na impossibilidade de contextá-las, valeu po expediente de desautorizar o porta voz. Por causa de sua obra como professora no mais forte sentido da palavra - segurança do que se ensina - , ela pedeu o aval da hierarquia católica a sua cátedra. Somando-se mais um capítulo sombrio à história intelectual da Igreja.
Marçal Versiani
Doutor em Teologia
Editorialista do Jornal O Globo
Jornal O Globo
Rio de Janeiro/RJ
Sábado
01 de Novembro de 1996
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