segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

LITERATURA: Taras da Moda ou Moda dos Tarados?

Livro analisa como estilistas se apropriaram da perversão e foram acusados de insuflar as mulheres.
Navegando entre a agonia, êxtase e lucros, a vertente mais constante da moda nos últimos 30 anos é feita de erotismo perverso, sugestões de violência sadomasoquista e - dependendo do ponto de vista - insulto às mulheres ou reconhecimento de sua superioridade. Quem garante e apresenta provas é Valerie Steele, no recém lançado "Fetish - Fashion, sex and power" ("Fetiche - Moda, sexo e poder"), Oxford University. A autora sabe do que fala. Estudiosa da história da cultura e professora do prestigiado Fashion Institute of Technology de Nova York, em Manhattan, este é seu quinto livro a lidar com moda, erotismo e os papéis sexuais estampados naquilo que é vestido (ou despido) por homens e mulheres. Espartilhos, sapatos bizarros ou de saltos altíssimos, roupas justas de couro e borracha, botas de cano alto, sutiãs e calcinhas usados publicamente, tatuagens, body piercings: todo o secreto arsenal dos fetichistas - homens, na esmagadora maioria (apenas 1% das mulheres é fetichista) - parece ter se liberado da vergonha vitoriana, saído das alcovas e ganhado as ruas. O que tornaria o fetichismo significativo em nosso tempo histórico, acredita Ms. Steele, é não estar mais associado primariamente às "perversões" (aspas dela) sexuais do indivíduo ou às subculturas sexuais (como sadomasoquistas, adeptos do leather, etc). - "Foi o movimento de liberação sexual dos anos 60 e 70 que provocou a reviravolta, obrigando a uma revisão dos chamados desvios. Ym simboilo claro foi a adoção das botas de cano alto, que identificavam as prostitutas" - diz Ms. Steele ao "ELA".
Dior foi precursos do fetichismo na "couture"
Simbolos fetichistas na alta moda, no entanto, teriam surgido muito antes, com Chrsitian Dior, no final dos anos 40. Sua "new line" - com a adoção da silhueta de ampulheta, equilibrada sobre saltos finos - originou o retorno das cintas, espartilhos, sutiãs com armações rígidas e sapatos de saltos altíssimos, todos objetos típicos do altar fetichista. A década de 50, com a figura feminina espremida em roupas ainda mais justas, forçada a caminhar na ponta dos pés dos sapatos de saltos sete e meio, aparece como os anos de prata do universo fetichista. Saint Laurent, nos anos 60, espalhou exemplos em mais de uma coleção. Em 1974, a butique de Vivienne Westwood (chamada "Sex" e decorada com chicotes, máscaras de couro e outros mimos sadomasô) já dava sinais do que, levemente alterado, levaria às passarelas. - "Enquanto parte do movimento feminista denunciava que eram estilos que desumanizavam a mulher, outra parte aplaudia a dominatrix como o espelho do crescente poder feminino" - conta Ms. Steele. Apesar das ilustrações e fotos que estariam à vontade em revistas semipornográficas ("é impossível falar de fetiche sem esbarrar no moralismo", ela avisa), seu livro é sério, recheado de citações de Freud, Foucault e Marx. O que poderá surpreender os menos atentos é que não há nada ali que já não tenha sido visto nas passarelas - e adotado por muita senhora dita respeitável. Não custa lembrar que o night club londrino Skin Two, inaugurado em 1983 como cenário favorito de desfiles como o de estilistas como Murray & Vern. Está certo que ingleses refinaram suas perversões durante o reinado da pudibunda rainha Vitória. Mas há mais.
Galtier diz que tinha fetiche pelo espartilho da avó.
As fashion victims da inagável vulgaridade do que Gianni Versace fez da coleção bondage (submissão), de 1992, não foram excessão. Também trilhavam o mesmo caminho Jean Paul Galtier (o sutiã pontudo que Madonna usou na turnê "Blond ambition" é apenas um dos seus muitos exemplos), Christian Lacroix, Vivienne Westwood, Dolce & Gabbana (na coleção "marafa rica", de 1991), John Galliano, Marc Jacobs (no outono de 1994), Betsey Johnson (suas bad girls datam de 1980), Anna Sui (na primavera de 1995), Thierry Mugler (constantemente revisitando a femme fatale), Azzedine Alaia (idem) e até mesmo Chanel (por Lagerfeld). - "Todos copiam o estilo, se não o espírito, do fetichismo" - garante a escritora. E já que as fantasias fetichistas invariavelmente passam pela humilhação, constrição, punição e inevitabilidade do desejo, Valerie Steele aproveita as 243 páginas de "Fetish - Fashion, sex & power" para apresentar origens históricas (onde a constrição dos pés das chinesas entra junto com o mito ocidental do sapato de Cinderela) e espantosas confissões intimas de alguns estilistas contemporâneos. A mais cândida ficou por conta de Gaultier: "O primeiro fetiche que fiz foi um espartilho (...) por causa de minha avó. Ela sempre me pedia para apertá-la dentro do seu". Malaise do final do século, reflexo da liberação sexual ou do mudo terror ancorado pela AIDS, o fetichismo na moda chegou para ficar. Até porque, no final das contas, moda é uma forma de fantasia. Mesmo quando dói, aperta e humilha.
Edney Silvestre Rio de Janeiro/RJ Jornal O Globo 02/03/1996 Sábado ------------------------------------------------------------------------------------

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